sábado, 30 de março de 2024

REPÚBLICA EVANGÉLICA DO BRASIL

 

Eles estão por toda a parte, espalhados pelos mais afastados recônditos do país, onde pode faltar creche, farmácia, delegacia e agência do Banco do Brasil. Mas nunca faltará uma igreja evangélica.

Dentro de uma década, serão a maior religião do Brasil que, para decepção dos servos de Francisco, deixará de ser o maior país católico para contar com um dos mais numerosos rebanhos evangélicos do planeta. Na liderança absoluta, os EUA, terra do capitalismo, do consumismo, do individualismo e do protestantismo, com seus 160 milhões de adeptos. Entretanto, ao contrário do que ocorre aqui, na terra de tio Sam os evangélicos estão em baixa, sobretudo entre os jovens. Para compensar, afinaram seu discurso para conquistar popularidade nas regiões carentes da América Latina e da África (como Nigéria e África do Sul), onde estão em franca expansão.

Mas em nenhum lugar do mundo o crescimento é tão impressionante como no Brasil. Há meio século, havia um deles em cada 50 brasileiros. Atualmente, um em cada 3. A retórica simplória que utilizam ajustou-se à natureza crédula (chamados que são de ‘crentes’) e à malandragem tupiniquins. Nos locais que se ressentem da presença do Estado como nas favelas e nos morros cariocas, áreas controladas pela bandidagem e pelas milícias, estenderam sua influência, convivendo harmonicamente com o tráfico e a contravenção.

O catolicismo ficou para trás, imobilizado devido a sua milenar estrutura hierárquica centralizadora, somada às rigorosas exigências para a formação de padres, que pode durar oito anos e exige sacrifícios como o celibato. Os fiéis meia-boca (‘não praticantes’) aceitam acovardados sua progressiva decadência, sem sequer dar a outra face.

Enquanto isso, os atuantes e eficientes neopentecostais ganham espaço dando respostas concretas a problemas cotidianos do povão e uma pregação mais próxima à sua sofrida realidade, cujas razões não lhes interessa compreender. Através da ‘ideologia da prosperidade’, oferecem a promessa de rápida ascensão social, ainda nessa encarnação, que ninguém aguenta esperar a redenção post mortem no paraíso celestial. Tudo mediante uma módica contribuição mensal de 10% dos proventos, através da qual os missionários intermediam a intervenção de Jesus, com quem mantêm uma estreita relação de compadrio.

Inspirado no american way of life, estimulam a cultura do empreendedorismo em que cada um é (ou julga ser) senhor de si mesmo, sem que o patrão lhes extraia a mais valia. Esse modelo se adequa à ‘uberização’ da força de trabalho em que o indivíduo se desdobra 18 horas ao dia por uns trocados, na ilusão de que, com a bênção do pai celestial, virá a se tornar um Neymar.

Mas se os espoliados fiéis penam sem sair do lugar, o mesmo não se pode dizer dos bispos. A apropriação dos dízimos mais as generosas isenções tributárias a que têm direito, possibilitou aos aspirantes a pastor exercer uma modalidade lucrativa de negócio. Investindo pouco e sem necessitar de grande preparo, a não ser um desempenho verborrágico convincente (de preferência, isento de ingredientes sócio-históricos), puderam encontrar uma oportunidade de rápido enriquecimento. A ponto de alguns deles amealharem gigantescas fortunas, ostentando vidas de luxo, o que, longe de ser condenável, é prova inconteste da bênção divina. Comportamento bem distante do ideal franciscano exaltado pelos católicos, de opção preferencial pelos pobres, inspirado nas palavras do Mestre: “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus" (Mateus 19:24), versículo que os crentes gostariam de expurgar do Novo Testamento.

A vida singela e despojada do homem de Nazaré que repelia os mercadores fariseus e se aproximava dos pecadores e marginalizados como prostitutas e ladrões presta-se melhor, na visão dos seguidores de Damares Alves, à de um esquerdopata. O deus que evocam assemelha-se mais a um agente financeiro que retribui as colaborações pecuniárias, não com a felicidade eterna, mas com polpudos retornos monetários e a perspectiva de um mundo de abundância material regado a grana e luxúria.

Os evangélicos não se mobilizam em praticar caridade (exceto se houver fidelização da vítima) e ações sociais em prol da coletividade. Se alguém padece em condições aviltantes, a culpa não é do sistema, mas unicamente do indivíduo que falhou em seu empenho pessoal.

O crescimento evangélico foi possibilitado pela permissiva facilidade com que são tratados pela legislação. Num país onde montar uma barraquinha de doces exige um mar de obrigações, abrir um templo requer um mero registro em cartório. E para habilitar-se pastor não há necessidade de graduação em teologia ou qualquer outra exigência. Enquanto na calvinista Europa, sua formação exige uma série de pré-requisitos, aqui qualquer charlatão pode exercer de imediato o ofício.

Curiosamente, o primeiro governo de Lula, hoje acusado de perseguição, criou facilidades para a prática da religião, isentando as igrejas de uma série de responsabilidades estatutárias. Nesse período ocorreu uma explosão na quantidade de igrejas. Segundo o IBGE, o número de estabelecimentos religiosos no país em 2022 superou os de ensino e saúde juntos!

Se o PT foi condescendente com o crescimento vertiginoso dos evangélicos, foi Bolsonaro quem capitalizou com competência o apoio dessas igrejas angariando através de medidas populistas o apoio da classe, vindo a se tornar um ser ungido, enviado pelos deuses para salvar a nação do perigo marxista e ateu. Conseguiu até difundir sua política armamentista e seu discurso raivoso e recheado de palavras chulas num universo em que deveria prevalecer tolerância, compreensão e amor ao próximo. E ainda colocou no STF um juiz ‘terrivelmente evangélico’ que acima dos preceitos jurídicos, julga pelo que reza a Bíblia.

Mesmo sabendo que jamais terá apoio deles, Lula teme exercer maior fiscalização aos evangélicos e acabar com a farra de privilégios. Se os generais e os políticos medem palavras, os pastores soltam o verbo com a certeza de que não existe, sob o céu de Jeová, força capaz de refrear sua atuação.

Conseguem assim emplacar o que lhes agrada. Ficam incomodados com a existência de homossexuais (direcionando-os à ‘cura gay’) e de banheiros unissex, mas não estão nem aí com os desvalidos famintos. Passam o pano para os estupradores Robinho e Daniel Alves (ambos evangélicos) mas amaldiçoam meninas que querem tirar de seu corpo o fruto de uma violência sexual.

Contam com o suporte da poderosa Frente Parlamentar Evangélica. Não há no Congresso corporações de católicos, espíritas, muçulmanos, judeus, budistas, umbandistas ou ateus. Tampouco, existe ‘bancada verde’, ‘bancada indígena’, ‘‘bancada antirracista’ ou ‘bancada de professores e cientistas’.  Mas tem a ‘Bancada da Bíblia’ que, ao lado da ‘Bancada do Boi’ (agroveneno, também chamada ‘Bancada do Câncer’), e a ‘Bancada da Bala’ (“bandido bom é bandido morto”), formam a famigerada tríade BBB, unidas em prol do atraso.

Dispõem também do controle de meios de radiodifusão, obtendo (além de espaço arrendado nas TVs) concessões públicas que deveriam promover a educação, as artes e assuntos de interesse de toda a coletividade, mas está a serviço apenas de determinados grupos.

Recentemente, perceberam maior eficácia nas redes sociais e no WhatsApp onde conseguem com baixos custos obter comportamento bovino da massa de fiéis. Os pastores dispõem de milhões de seguidores repassando-lhes fake news, sem controle da sociedade.

Os evangélicos enfiam goela abaixo seus princípios morais a todos os brasileiros e brasileiras inclusive aos que professam outros credos. Interferem até em medidas que visam melhor qualidade de vida dos cidadãos como na legislação sobre ruídos urbanos, que restringe os decibéis de seus barulhentos cultos. A proposta de fechar a avenida São João para veículos para valorizar o Centro de São Paulo vem sendo barrada pelos frequentadores de um único templo localizado na via que alegam maior dificuldade de acesso ao local. Ao contrário das outras religiões, boicotaram medidas de combate à COVID porque obstavam as aglomerações (e consequentemente a receita financeira).

Na Amazônia, mantêm boas relações com os desmatadores e os garimpeiros ilegais quase todos evangélicos (a quem enxergam como ‘empreendedores’). Querem ‘catequizar’ na marra os índios e os quilombolas, levando-lhes ‘a palavra de Deus’. É conhecida a virulência com que atacam o candomblé e as religiões de matriz africana que associam ao diabo.

Há 30 anos, um pastor da Universal chutou uma imagem de N. Sra. Aparecida, porém a reação indignada fez com que evitassem confronto aberto com a majoritária comunidade católica, mas é uma questão de tempo.

Há alguns (poucos) evangélicos ‘do bem’, legítimos descendentes dos protestantes históricos, com rígidos e incorruptíveis valores éticos, como Marina Silva, militante ambientalista e defensora do estado laico, princípios hoje rechaçados em seu meio dominado por Felicianos, Malafaias e Valadões e mal se reconhece como tal.

Alinham-se a governos de direita que desprezam os princípios da democracia e os direitos humanos a que associam ao comunismo. Não é à toa que seu crescimento foi acompanhado da propagação de valores extremistas, do fanatismo e da cultura do ódio.

Se com 30% já conseguem manipular o país, imagine o que farão quando se tornarem maioria! Sua intenção é claramente implantar uma teocracia, a República Evangélica do Brasil. Converta-se voluntariamente antes que seja obrigado a fazê-lo.

 

quinta-feira, 21 de março de 2024

PRECISAMOS FALAR SOBRE ELON

 

“Se um macaco acumulasse mais bananas do que pudesse comer, enquanto os outros macacos morressem de fome, os cientistas estudariam aquele macaco para descobrir o que diabos estaria acontecendo com ele. Quando os humanos fazem isso, nós os colocamos na capa da Forbes” (Professor Emir Sader)

Li recentemente que se os 3000 sujeitos mais ricos do planeta, num ato coordenado de filantropia, resolvessem doar 5% de sua fortuna, a dinheirama gerada seria suficiente para extirpar a fome do planeta. Esse distinto grupo, uma turminha que poderia ser acomodada confortavelmente no interior de um desses navios de cruzeiro, teria capacidade de resolver num passe de mágica o trágico problema que há séculos assombra a humanidade. Estamos nos referindo a apenas 3 mil felizardos, uma gotinha de 0,0000375% em meio ao oceano humano de quase 8 bilhões de criaturas que com eles partilham o mesmo planeta.

Elon Musk está no topo desse seleto clube. O presidente-executivo da Tesla e dono do Twitter (atual X) tem um patrimônio de quase 300 bilhões de dólares ou seja 1,5 trilhão de reais. Convertido em papel moeda, resultaria em quase cinco vezes todo o dinheiro em circulação no Brasil! Equivalente a 15 bilhões de notas de 100 reais que, alinhadas, formariam uma fila de tamanho igual ao triplo da distância até a Lua, ida e volta! Essa grana toda que faria o tio Patinhas resignar-se à constatação de que não passa de um pato chucro, está nas mãos de um único indivíduo.

Pois é, se esse sujeito sozinho resolvesse, numa ação iluminada de generosidade, abrir mão de meros 2% de sua fortuna, algo que obviamente não lhe passa pela cabeça, poderia impedir a morte de 40 milhões de pessoas que se encontram em situação de penúria extrema. Mitigar a fome de africanos pretos pobres e desmilinguidos definitivamente não faz parte dos planos do nobre empresário trumpista, empenhado que está em destinar seus preciosos bilhõezinhos a iniciativas de maior relevância para a raça humana como projetar naves espaciais para levar outros endinheirados para passear em Marte já que a démodé Terra, lugar de plebeu, já era.

Mas, sejamos justos, nem todos os super-ricos são tão zelosos com a integralidade de seus estimados bilhões. Ao contrário do que se possa imaginar, alguns desses seres celestiais têm consciência de que a fortuna que amealharam ao longo da vida veio acompanhada da obrigação moral para com a sociedade que os possibilitou chegar a essa privilegiada condição financeira. Afinal, as estatísticas revelam que os principais expoentes dessa nata assistiram sua fortuna se multiplicar na última década, enquanto nós outros, pobres mortais, que já estávamos na pindaíba, afundamo-nos ainda mais em nossa indigência.

Uma pesquisa recente revela que 3 em cada 4 super-ricos não se oporia à criação de impostos incidindo sobre suas posses. Um grupo de 200 magnatas (entre eles um brasileiro) lançou há pouco um manifesto reivindicando (acredite) pagar mais impostos.

"Nosso pedido é simples. Nós, os muito ricos queremos ser taxados por vocês. Isso não vai alterar fundamentalmente o nosso padrão de vida, tampouco prejudicar nossas crianças ou afetar as economias de nossas nações. Transformará a riqueza extrema e improdutiva em investimento em nosso futuro democrático comum. (...) Quando vocês vão taxar a riqueza extrema? Se os representantes eleitos nas principais economias do mundo não adotarem medidas para lidar com o aumento dramático da desigualdade econômica, as consequências serão catastróficas para a sociedade" diz o documento direcionado à elite econômica e política reunida no Fórum de Davos.

É de se estranhar que nossa civilização tão diligente em alardear as conquistas no campo da ciência e tecnologia que pretensamente nos possibilitaram melhor qualidade de vida não seja capaz de equacionar esse simples probleminha matemático de distribuição de renda que traria maior paz e equilíbrio social, minorando o sofrimento de bilhões de seres humanos. É pródiga em criar novas tecnologias, mas inapta em permitir que todos tenham acesso a elas.

No Brasil, a situação é particularmente alarmante. Estima-se que o 1% mais rico concentre nada menos do que 2/3 da riqueza nacional, enquanto os 50% da base da pirâmide detêm apenas 2% da riqueza.  Esse fosso gigantesco é absolutamente ultrajante.

Ainda que tendo apoio da maioria da população (85% segundo pesquisas), a taxação de grandes fortunas, por incrível que pareça, encontra resistência na sociedade. Boa parte dos deputados de direita que tomaram conta do Parlamento votou contra projeto do atual governo de taxar bilionários (‘virou crime ser rico no Brasil’ disse o ex-presidente Bolsonaro, antevendo problemas com o fisco quando chegar a essa condição). Para tanto, contou com o apoio dos evangélicos, adeptos da ‘teologia da prosperidade’, segundo a qual, os abastados são merecedores da bênção material que lhes foi oferecida por seu Deus empresário. Recusam-se a colaborar com um tostão que seja para um necessitado (‘fracassado’), mas doam de bom grado um décimo de seu parco salário para o nababo pastor, que foge da caridade (e dos impostos) como o diabo foge da cruz.

Mas não são só esses que se opõem à ideia de taxar super-ricos. Diversos economistas neoliberais para quem ‘imposto’ é palavrão, também se posicionam contra.  Alegam que de nada adianta taxar os bilionários pois eles desviariam suas fortunas para outros países, em especial os paraísos fiscais, além de serem mestres em dar um chapéu na Receita, corrompendo fiscais e sonegando tributos. Ou seja, já que a sociedade não consegue enquadrar os larápios, deve-se curvar a eles. E fica tudo como está.

Assim como os advogados, os economistas são especialistas em criar dificuldades para implementar mudanças de caráter social. Submetendo-se à frieza dos números, cortam nossos sonhos de ter um mundo melhor. Ao invés de conceber uma sociedade composta por humanos empenhados em viver em harmonia entre si, enxergam um ambiente mercantilizado, onde agentes se digladiam, cada qual querendo otimizar sua posição, com base em seus interesses particulares, visando maximizar seus ganhos materiais. Nesse campo de batalha, chamado mercado, os super-ricos desempenham o papel fundamental de investidores, os motores do capitalismo. Em direção ao apocalipse socioambiental.

O que não enxergam é que esse é um tema que transcende a esfera econômica. Não é também uma questão ideológica, coisa de comunista. Exigir maior equidade e evitar essas aberrações na distribuição dos recursos é uma necessidade ética, de justiça social.

O que a humanidade produz é mais do que suficiente para suprir a necessidade de todos os indivíduos, mas apenas uma minoria cada vez mais afunilada colhe os frutos e ainda se dá ao luxo de esbanjar as sobras em futilidades, em detrimento de legiões de famintos que perambulam pelos continentes à procura de um lugar onde consigam sobreviver com as migalhas. Taxar os super-ricos é um imperativo para que possamos superar esse dilema e nos tornar uma civilização superior. Pelo menos, no mesmo nível da dos macacos.

 

 

 

terça-feira, 21 de novembro de 2023

GUERRA E BARBÁRIE


 A guerra israelo-palestino em curso vem despertando paixões. Observa-se que, de maneira geral, quem se encontra mais à direita no espectro ideológico assume a defesa de Israel e quem se afina com a esquerda tem simpatia pelo lado palestino.

Nesse contexto polarizado, sobrou pouco espaço para a análise isenta (se é que seja ela possível). Abro mão de me pronunciar sobre quem está com a razão. A única certeza sobre a qual cravo minha opinião é que é que é preciso encontrar urgente um caminho que leve à paz. Os dois lados têm em seu passivo a morte de civis inocentes, seja de reféns ou vítimas de bombardeios indiscriminados.

O que me leva a dar um pitaco nessa confusão é relativizar a visão simplista que muitos têm sobre conflito, sob uma perspectiva histórica.

Israel é tido como ponta de lança do sistema capitalista, uma sociedade adiantada e moderna, uma ‘democracia’ nos moldes ocidentais, encravado em meio aos ‘bárbaros’ muçulmanos que possuem governos autoritários e até teocracias adjetivadas de medievais.

Segundo esse estereótipo, cada cidadão nascido em Israel é um lídimo representante do mundo civilizado tal qual um europeu ou um norte-americano, dispondo de condições socioeconômicas dignas de Primeiro Mundo. Em contraste, os indivíduos que se amontoam na faixa de Gaza e na Cisjordânia sobrevivem em precárias condições sociais equiparadas às populações mais carentes do planeta, apinhadas na África, na Ásia e na América Latina, predestinadas a levar uma vida miserável, sem perspectivas.

 As imagens que assistimos nos telejornais confirmam esse clichê. Pelas avenidas limpas e bem iluminadas de Tel Aviv ou Haifa, são entrevistados cidadãos israelenses polidos e bem apessoados que manifestam temor de frequentar shopping centers, visitar parentes ou ir a festas rave sob risco de toparem com um foguete caseiro perdido ou um desesperado homem bomba, disposto a oferecer sua vida para levar junto a de um inimigo opressor.

Em contraste, as ruas (se é que podemos assim nomeá-las) sombrias de Gaza apresentam bem menos glamour. São pilhas de escombros cercadas de sangue e fumaça, com pessoas desesperadas correndo a esmo, hospitais onde se aglomeram seres aflitos. Um mundo dilacerado em frangalhos que nos remete à Guernica de Picasso.

A desigualdade entre esses dois cenários chancela uma matemática perversa, segundo a qual a vida de cada humano israelense vale tanto quanto a vida de 10 ou mais ‘sub-humanos’ palestinos. Segundo essa concepção bizarra em que alguns importam mais do que outros, para cada ‘bom moço’ israelense que teve sua vida ceifada, é preciso eliminar pelo menos 10 palestinos, representantes da ‘escória’ da humanidade que só faz encher o planeta com sua prole de famintos desmilinguidos.

Se a ação do Hamas matou 1200 ou 1400 ‘cidadãos de bem’ de Israel com boa formação, é preciso responder à altura extirpando ao menos dez vezes esse número de árabes ‘selvagens’ para fazer justiça e restaurar o equilíbrio. Esse cálculo certamente está presente na mente de boa parte daqueles que apoiam a brutal ação retaliatória do exército israelense empreendida por Netanyahu e seus amigos fundamentalistas que pretendem, com a ajuda dos EUA, “dar uma lição exemplar” nos palestinos, enviando o maior número possível deles para a companhia de Allah, não importa se, entre eles, haja crianças, idosos, todos com sua parcela de culpa no ato insano do Hamas.

Independente de qual dos lados tenha razão, a Guerra no Oriente Médio escancara o embate entre essas duas categorias de gente. Por um lado, o sofisticado aparato militar com bombas e mísseis de última geração colocados na defesa dos valores progressistas do Ocidente e, de outro, miseráveis seres incultos do Terceiro Mundo abandonados à própria sorte que insistem em continuar vivendo sem um lar e uma pátria.

Enquanto os israelenses são tidos como vítimas, sobreviventes do holocausto, que querem unicamente levar uma existência pacata, os palestinos são vistos como terroristas em potencial. Em nenhum momento, são encarados como ‘povo’ ou ‘nação’ detentores de direitos, mas como criaturas congenitamente violentas cujo único objetivo é apagar Israel do mapa.

Os mesmos que repudiam com veemência o antissemitismo fazem vistas grossas ao racismo, à xenofobia e à islamofobia.

O atual embate do Oriente Médio é claramente um desdobramento da luta colonial que o mundo dito desenvolvido (simbolizando a civilização judaico-cristã) trava contra os povos oprimidos (em que se insere a escravidão e a destruição das culturas que professavam credos diferentes). Muçulmanos, hindus, budistas, religiões de matriz africana, povos originários e até ateus são encarados como inferiores. Com o apoio entusiasmado e participação ativa dos evangélicos, todos esses rudes pagãos devem ser devidamente catequizados... ou eliminados.

O Islamismo foi vítima desse processo, tendo sucumbido ao poder bélico dos cruzadistas que tinham por objetivo extirpar militarmente os ‘infiéis’ para expandir a palavra da Bíblia, na esteira dos interesses do capital comercial.

Se hoje é associada a práticas arcaicas, a civilização islâmica viveu há alguns séculos momentos de glória e esplendor, em que floresciam as artes e as ciências, sendo transferidos para nossa cultura conhecimentos de matemática, astronomia, física, química, medicina, arquitetura, agricultura, filosofia etc. Espanha e Portugal beneficiaram-se largamente desse legado, tanto que despontaram da ocupação moura como os países mais adiantados do continente europeu.

Em oposição ao estigma que os acompanha, os muçulmanos à época eram pacíficos e bastante benevolentes com cristãos e judeus, não havendo registros significantes de violência contra os que, sob seu domínio, professavam credos diferentes.

Ao contrário, a expansão do cristianismo foi acompanhada de intolerância e violenta repressão. Aqui mesmo na América Latina, tivemos exemplos do furor belicista dos espanhóis que para pilhar seus metais preciosos, devastaram organizações sociais milenares como a de incas, maias e astecas deixando um rastro de sangue e escombros. O Brasil não teve melhor sorte: o domínio imposto pelos portugueses com ajuda dos ingleses quase dizimou os milhões de indígenas que há milênios viviam aqui em comunhão com a natureza.

Assim como ocorreu na Europa e nos EUA e agora em Israel, a construção de uma sociedade judaico-cristã, branca, capitalista, neoliberal que reverenciamos como “civilizada” esconde uma trajetória de horror, aniquilação e destruição de modos de vida alternativos que hipocritamente chamamos de “primitivos”.